Falar em saúde mental pode ser desafiador quando constatamos o quão o cenário contemporâneo nos revela uma grande ocorrência de vulnerabilidade psíquica entre as pessoas. Inclui-se a isso que nossos tempos apelam para a patologização da vida, buscando transformar manifestações comportamentais em sintomas, doenças e transtornos, sem uma prévia pesquisa sobre isso. Assim, o conceito de saúde mental pode ser controverso. Se olharmos para a história, e para o modo como a ideia de saúde mental veio se transformando ao longo dos séculos, conseguimos destacar como a saúde mental é um conceito em constante redescoberta e reformulação. Por isso, exige-se responsabilidade no manejo de seus significados, uma vez que estamos lidando com algo caro para o funcionamento do indivíduo e seu direito à existência em sociedade.
Na Grécia Antiga, pessoas com transtornos mentais eram totalmente excluídas do direito ao pertencimento da sociedade e na Idade Média, muitas vezes, casos de transtornos mentais, por exemplo, foram concebidos como situações de possessão espiritual, bruxaria e afins. Ironicamente, é nesse mesmo período em que surge o primeiro hospital psiquiátrico do mundo, onde os pacientes eram tratados de forma violenta. Só a partir do fim do século XVIII, no penúltimo século da idade moderna, ou seja, muito recentemente, é que viemos reconhecer alguns ganhos, ainda que controversos, iniciais, no campo teórico, no modo de se estudar e reconsiderar, ainda que de modo mínimo, o sentido de saúde mental, com os contextos sociais e científicos que favoreceram, de um lado, o surgimento da psiquiatria, desmistificando interpretações e, de outro, elementos que antecederam o surgimento posterior da psicologia e da psicanálise ao longo do século XIX. Ainda assim, muitos dilemas prevaleceram. É também no século XVIII que nasce o sentido de “clínica” e o seu contexto é perpassado pelo problema da consideração do que seja patologia mental. Então, algo parece ser muito importante para considerar esse campo: entender que há uma dicotomia cravada entre o que seja normal e patológico, aliando o “normal” à saúde mental. Por isso, a patologias psíquicas que condicionavam a ideia de ausência de saúde mental eram, ao mesmo tempo, o diagnóstico como passaporte para a exclusão da sociedade e a permissão de um tratamento sem uma perspectiva de cuidado. Ou seja, tratar não deveria ser considerado cuidar da patologia, mas suprimi-la. E suprimir a patologia resultava, em geral, na ideia de supressão do indivíduo de diversas formas simbólicas e reais.
A proposta de supressão da patologia, convertida na ideia de cura, e propagada pelos campos profissionais da saúde mental, esteve aliada a uma elaboração de políticas terapêuticas convergentes com um ideal de desenvolvimento de civilização e cultura. Assim, ela se aliou a um conjunto de práticas biopolíticas e psicopolíticas de regimento social. O sentido prático de saúde mental, por outro lado, nesse cenário, não tardou em trazer novas problemáticas como dilema, desafiando as certezas da clínica, as classificações gerais e rígidas, além de comprovar ineficácias em muitas abordagens, ditas, terapêuticas, que se revelaram limitadas formas reificantes de gestão de corpos, mentes e comportamentos. Assim, esse quadro, ao mesmo tempo, gerou novas formas de patologias mentais, ao passo que, por outro lado, tentava revertê-las.
Falar em saúde mental, com efeito, acresce a necessidade de uma responsabilidade maior diante do que a história nos mostra. Precisamos substituir o sentido de “tratamento” pelo sentido de “cuidado”. Não apenas o cuidado com a palavra saúde mental, mas, antes, especialmente, com o seu sentido prático, ou seja, o cuidado em como o indivíduo lida com ela em sua vida privada e pública, entre a família, a sociedade externa a ele e todos os significantes que atravessam esse campo. São muitas variantes a serem consideradas, nesse sentido. Enfim, alcançar a saúde mental deve considerar, pelo menos, um aspecto: a aquisição da viabilidade de bom convívio com a própria mente, apesar de seus desafios diários. Portanto, os processos terapêuticos de cuidado devem entregar ao contexto da saúde mental, ao menos, o sentido do direito ao pertencimento e à vida que o indivíduo precisa, desde o campo mental. Pertencimento do indivíduo a si próprio e ao envolvimento com a sociedade, sem que isso implique adequação ou exclusão violenta ou forçada e, além disso, o direito à vida como um exercício das potencialidades criativas e autênticas, matizadoras e favorecedoras de uma sociedade rica e plural.
Ana Monique Moura
Professora, Psicanalista e Neuropsicopedagoga na Self
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